sexta-feira, 18 de março de 2011

A anti-boçalidade japonesa. (texto de Cora Ronai)

Lá ia um preocupado com o aluguel, o outro com os filhos, um terceiro com o emprego; numa casa a geladeira quebrada, na outra as obras quase prontas; um casal apaixonado, o outro convivendo com o ódio surdo dos anos; uma mulher que não cabia em si de felicidade ao descobrir que ia ser mãe, outra desesperada pelo mesmo motivo; um rapaz com a primeira moto, uma moça com as roupas novas, uma criança entendiada com os brinquedos velhos, outra fascinada com um game novo; um homem arrasado com um diagnóstico sem remédio, outro recuperado de uma cirurgia; uma avó comprando verduras no mercado para o jantar da família, outra buscando os netos na escola, um marceneiro aborrecido com um calote, uma professora feliz com o progresso dos alunos, um carteiro entregando a correspondência. Vendedores vendendo, compradores comprando, dinheiro trocando de mãos, pequenas trivialidades cotidianas, como pontos numa tapeçaria.

De repente, uma onda gigantesca sai do mar e acaba com tudo, alegrias e preocupações, felicidade e desespero, lucro e prejuízo, amor e ódio. Onde havia a engenhosa obra humana que é uma cidade em pleno funcionamento já não há nada, a não ser lama e escombros. A vida que sobrou precisa continuar; mas como se continua depois de ver o mundo acabar em dez minutos? Qual é a escala de valores que se aplica? O que passa a ser prioritário? A idéia de que a vida se reduz ao mínimo denominador comum, às necessidades mais imediatas, é suposição de quem vê a catástrofe de longe. Lá, em meio ao caos, é possível que nada tenha tanto valor quanto uma foto, uma carta, um recorte de jornal, provas materiais do que existiu um dia. Ou não. Haverá talvez quem incorpore a nova realidade e passe a imaginar que o que havia antes não passava de uma alucinação coletiva, um sonho ao contrário.
Ainda assim, a civilização e a educação, duas irmãs que fazem diferença, escaparam ilesas da tsunami. Não se verificaram roubos, saques ou ataques de histeria destinados às câmeras de TV. Foi um assombro para quem assistiu a tudo do outro lado do mundo e, com certeza, é um consolo para quem está lá, e não precisa acrescentar à já longa lista de vicissitudes o medo do seu semelhante. O Japão provou que o ser humano não precisa ser necessariamente violento, boçal e amoral. Resta saber quantos séculos mais nós precisaremos para alcançar este estágio.

Um comentário:

J. disse...

Belíssimo.
Estar longe da tragédia é uma bênção, mas é preciso estar perto da transformação que ela gera, estar em sintonia com o significado dela para as pessoas que alí estavam...pq o "longe" é mto relativo. E quase nada é à toa.